sábado, 10 de dezembro de 2011

Do livro "Ninguém o trata por homem"

Noivado







      Oh dor que habitas casas no peito

E tens campos de amor e de ciúme

P’ra levar daqui este queixume.

Diz-me de quantas estações precisas.





Oh dor, filha do meu sofrimento

Ter-me-á calhado em sina eu ser eleito...

O homem que caminha nas areias

Mais negras e profundas do teu beijo?





Oh dor, leva daqui os teus anéis

Os vinhos e as carnes deste noivado.

Escolhe outro nome para amante

Leva nas tuas barcas tal pecado.





Porém, de desta noite mal dormida

Não encontrar senão mais pesadelos,

Que o vale das tuas lágrimas seja feito

Altar do alimento dos meus medos.
















A persistência do grito












Sou viajante no tempo

À espera de adormecer.

Sou ladrão do pensamento

Sou um espião do prazer.





Sou como o pulso de um rio

Aberto numa torrente.

Eu sou a árvore do grito

À procura da semente.













         Poesias mal-ditas




Minhas palavras são estradas 
De cinzas, amores e vinhos.

Como as almas dos moinhos

São do vento condenadas.





São beijos nas cicatrizes

São frutos mortos no tempo,

Meus versos são só raízes

E troncos de sofrimento.





Da mesma cor do silêncio

Minhas palavras são escritas.

Minhas palavras são tristes

Como poesias malditas.


















































Remos de Tinta







Há celas

Nas caravelas.

As velas

Parecem telas

Tecidas de negro mar.



O remador

Puxa a dor

Puxa os olhos para a tela.

Leva nos pés o pincel

Dum peso preso em papel.



O pintor arrasta a tinta

E há quem diga até que sinta

As febres do remador.












NÃO SE SENTEM NESTA MESA

SEM TEREM LAVADO AS MÃOS



























AGRESSÃO









Podem chamar-me silêncio

Por uma porta fechada.

Podem chamar-me invasor

Por não ter visto de entrada.

Podem sentar-me na mesa

A comer da vossa crença

Mas não me podem chamar

Agressão sem violência.



Podem chamar-me colchão

Mesmo sem ter dois amantes.

Podem chamar-me escorbuto

Na barca dos navegantes

Podem chamar os meus médicos

Ao inchar esta doença.

Mas não me podem chamar

Agressão sem violência.



Podem capar o meu corpo

À ferida do vosso mundo.

Plastificar os meus sonhos

Nos cartões de um vagabundo.

Doar o meu coração

Fossilizá-lo em carência.

Mas não me podem chamar

Agressão sem violência.


















DESTROÇOS  DA ÚLTIMA ESPERÂNÇA









OH MAR!



Oh covil de mais um pensamento

Que libertas os gritos do vento

P´elas gargantas das ondas abertas.



No teu ciúme,

Arrancaste com braços de lume

O cinzento que às vezes nos une

E cuspiste-o no dia.



Oh mar !

Se nos braços guardas a bonança

E os restos da última esperânça

O navio ouve o porto.



Oh mar!

Se a nascente guarda o navegante

A corrente já leva na mente

Tê-lo  dentro de si.



Oh mar!

Entre a terra e o céu

Há a onda mulher enfeitada.

Barcos casulos lavrando a entrada

Da boca de um porto.



Oh mar

Ouve a prece do frio algemado

O sussurro do vento calado

E deixa-me voltar!














O Guerreiro









Levo um guerreiro no peito

Com um troféu simulado

E uma espada de silêncio

Com o teu nome gravado.





Levo uma rosa nos dentes

E uma armadura na dor

Levo um cavalo invisível

Pra não me sentires chegar.





Levo nuvens nos meus olhos

Levo a sombra companheira

Levo um açaime de sonhos

Pra te fazer prisioneira.





Mas só te vou poder ver

Depois qu’a noite levante.

Levo o vento condenado

Que jurou ser teu amante.





Levo as tranças da miragem

Desfeitas como novelos.

Levo uma coroa de fogo

Pra t’enfeitar os cabelos.





Levo sede nestas feridas

E um beijo como quimera.

Quando chegar ao castelo

Os guardas estarão à espera?


















INSÓNIA







Mãe, não consigo dormir

De tanto querer não consigo.

Acordo com as asas negras

Enrolado no umbigo.



Mãe, não consigo dormir

Sinto baratas no rosto

Parece que elas engordam

Onde o veneno foi posto.



Mãe, eu já tenho uma bala

Feita de cuspo e de lama.

Mãe, não consigo dormir

Com bombas na minha cama.










Chegados à terra do nada

Resta-nos esperar

Nos olhos guerreiros rasteja-se a calma

A última batalha pousa nos ombros do esquecimento.



A espada ferve no sangue da terra.

Nós, os filhos do tempo

Repousamos.









Eternamente

A dinastia do tempo e a permanência

Da chuva nas rosas.



Eternamente

A inspecção do sonho

E os olhos azuis da esperânça



Eternamente

As veias da escrita

Plantadas com as sementes de Roma.



Eternamente a seringa

No braço do esquecimento.



Eternamente

O vento falando sòzinho







89












No Ano de 89

Pouco mais de solidão

De meio grito abafado

Nas paredes d´um colchão.



O assassino apalpa a cama

Pergunta quem dormiu nela

Alguém lhe feriu a voz?

Ou foi alguém porta-voz

Da fuga pela janela?



Ele trazia sinceros

Dois olhos feitos archotes

A cabeça como um jogo

Os braços como chicotes.



Parou recordado

Brindou ao que leu

Tudo aquilo eram farsas

Do poeta assassinado

Morto pelo que escreveu.



1989





As Vozes da América










Sei de uma canção


Que fala da morte

E da compreensão.



Agora estou de volta

Não trouxe a canção

Mas trouxe as vozes da América.



Ouçam as vozes da América:



Hoje morreu um homem

Na letra de uma canção.

Foi inventado por mim

Morto pela minha mão.



Já viram que faço dele

Tudo o que me apetecer?

Posso pô-lo em liberdade,

Posso dar-lhe a minha idade

E até o posso abater.



Podia dar-lhe uma arma,

E mandá-lo combater.



Podia fazê-lo calar,

Mete-lo numa prisão

Até o poema acabar.

Posso rasgar o poema.

Fazer cair outro homem,

Gritar-lhe bem alto a canção

No quarto onde as bestas dormem



As feras andam soltas

P´la cidade.

Alguém as teme?

Alguém as prende?

Há alguém que está calado

Porque ninguém o entende?

Há alguém a construir

Na cidade uma cabana?

Já estou farto d´acordar

E pensar que estou na minha cama...



Ei,

Pensam que estou sòzinho?

Atrás da minha cabeça

Tenho escrito prisioneiro.

Alguém me solta?

Dá-me um convento?

Estou na terra de ninguém

A matar tudo o que é tempo.

A violência passou

Tal como passou o vento?

As notícias desta morte

Que é que as vai receber?



No meu caixão quero um espelho.

Quero ver.




1989








NATUREZA MORTA









Quando o pó da chuva cobrir as chagas

Quando os olhos não se acenderem

Quando o suor do macho

Deixar de se vir em sangue

E as ordens apodrecerem ...



Quando a terra-fêmea

Deixar de ser cavalgada.

De dar à luz nossos filhos.

Quando as perguntas

Ficarem penduradas

Nas sombras dos nossos trilhos.

Quando as garras da garganta

Se enterrarem na terra

E a voz das árvores cair.



Quando as veias de um chicote

Fossilizarem mentiras

E a mão errada se partir.



Quando a máquina do tempo

Respirar este veneno,

E nós despirmos a ferida.

Ficará aberta a estrada

Que nos conduz à entrada

Da natureza perdida?
















O HOMEM DO SILÊNCIO





Bebi num deserto

Chuvas de gás.

Só vi experiências atómicas

Nos cabelos de um rapaz.





Hiroshima, Palestina.

Sou o homem do silêncio

Ferido em tempo de paz.



Deram-me um nome.

Deram-me um número.

Já esqueci tudo.

Sei que a única gratificação era estar vivo.





Vietnam ou Guiné.

Sou o homem do silêncio

À procura de uma fé.



Tenho amigos pacifistas

Decifrando violência.

Será que eles estão em mim

Ou estarão só na cabeça?



Fácil demais, pensei

Tomei-vos por vendavais

Só que ainda ouço crianças

Com olhos de generais.





Cassetetes, capacetes,

Dominação, opressão.

Será que eles estão em mim

Ou estão só na televisão?



Imperfeições calam bocas

Outras por demais fechadas.

Sou o homem do silêncio

Calado nas vossas estradas.



Labirintos, absintos,

Multidões, outras prisões.

Onde é que vocês estavam

Antes de nos calarmos?



E foi na brecha de um muro

Qu´um dia calcei uma mão.

Toquei numa idéia

Toquei num botão.



Uma mão, um botão.

Um momento:

Onde é que estarão vocês

Antes de morrer o vento?



Ainda há algo a fazer

Sem ser beber-vos os olhos.

Deitar-me na vossa cama

E dormir com o meu fantasma.



Onde é que vocês estavam

Antes de o mundo calar-se?

Sou o homem do silêncio

Que falou em libertar-se.














Homem do telescópio









Os olhos dos insectos denunciam tiranias

Era para onde olhava e viu a tua cidade.

O homem do telescópio

O filho da liberdade.





O homem do telescópio esteve ontem no teu quarto

Antes de fechares a porta

Depois de abrires o gesto.

Gosta do sítio onde vives

Mas odeia tudo o resto.



Devias ter outro nome. Outra identificação.

Entre a janela e o mundo não há qualquer relação.

Facilmente és revelado.

Olhos de masturbação.



O homem do telescópio deixou a janela aberta.

Era talvez um sinal nas tuas noites vazias.

Foste longe

Quase o viste

Chegaste a temer fantasias.


















MORTE














SOLTO A VOZ


EM AR DE GRITO.



TUDO O QUE EU TENHA A DIZER

ANTES DE VIR A VIVER

NESTA MORTE FICA DITO.


















Sou um monstro.







Sou o monstro que dormita nestas praias

Que vagueia nestes bosques

Desesperados de neve

Inventando ocasiões p´ra tardar em cobardia.



Sou um monstro.

Sou o monstro que deixou a luz acesa

E espera que alguém a apague

Que tem medo de ir dormir

Que amanhã possa ser tarde

Que deixou uma arma na mesa

E um bilhete a indicar

Que é ele o assassino.



Sou um monstro.

Sou o monstro que cuspiu

E envenenou uma roseira

Que aprisionou o que viu

Numa casa de madeira,

Perto de tudo e de nada.



Sou um monstro.

Sou um monstro insaciável de loucura.

Que se esta dor não passa

Deixa passar outro dia

Que vem anunciar sonhos

Num sonho que o agonia.



Sou um monstro.

Sou o monstro que deixou

A fechadura trancada

E o pensamento lá fora.

Sou o monstro que consome cada minuto da hora





1990








AUTO-RETRATO










Um sorriso enterrado

Na cova da boca.

Um rosto apagado

Em dois punhos em chama.

Os dedos mordidos

Pela ira dos dentes.

A sede do álcool

Consumida num cigarro.



O oeste como caminho.

A morte como passaporte.

O tempo enforcado

Na corda das horas.



A noite tropeça

Na mesa onde escreve.

Derramam-se as palavras

Sobre os guardanapos do acaso.



Um homem visto por si próprio

Que lutando contra tortura

Da brancura da folha

Deixa à solta as confissões de uma máscara

E deixa no seu auto-retrato

O testamento de um momento feliz.







1990





















PORQUE É QUE PROCURAMOS

AS CHAVES DO CALABOUÇO

ENQUANTO AS MULHERES EM FRENTE DOS ESPELHOS

SE OFERECEM A SI PRÓPRIAS?









1990















Eu não sou um poeta.

Os poetas são falsos.

Apesar de ser falso

Eu não sou um poeta.



Só sei que o copo é curto

A garrafa vazia

E eu tento esquecer

Bebendo poesia.







1990










A ESPERA







O pescador

Chega à cidade.

É só mais um pescador.



A prostituta

Trazia uma mordaça escondida

Na mão de uma mulher.



O homem cego

Fugiu para dentro da luz

E, então percebeu.



Um bêbado recusa-se

A ser bêbado

E abre mais uma cerveja.



O louco, o solitário e o soldado esperam.







1990






AQUI SÓ HÁ DOR

























CANÇÃO ASSASSINA







Tinha um poema secreto


Numa canção assassina

Tinha o meu beijo emprestado

À boca da carabina.



Tinha um quarto cheio de facas

E de sombras femininas.

Tinha trezentas imagens

De utilidades divinas.



Tinha uma casa de espelhos

A reflectir o fim.



Mas não.

Nunca mais vou abrir

Estas campas em mim.



E tinha um crime interior

Mesmo gravado na vista.

Tinha nas mãos marginais

Um punhal ilusionista.



Tinha alcatéias de estrelas

Assaltando a solidão

E entre os contornos dos dedos

Os seios da escuridão.



Tinha à mercê da mentira

Uma prisão de marfim.

Tinha uma estrada de sangue

Num invisível jardim.



Mas não.

Nunca mais vou abrir

Estas campas em mim.
 
 
 
 
 
 
À PORTA FECHADA: A CRIAÇÃO ( I e II):
 
 
 
I- Cada homem sozinho
nas quatro paredes do seu quarto vazio,
assume uma forma animal.
Ninguém o trata por homem.
 
 
 
II- Paredes brancas.
         Trancas nas portas.
Rendo-me.
 



















Sou algo meio aparente

De qualquer definição

Sei qu’arrasto uma bandeira

Mas não sei bem por que chão.



Sou um vagão solitário

Duma qualquer carruagem

Que vai seguindo entre os trilhos

Duma possível miragem.



Sou o destino inconstante

Duma inconstância sentida.

Sou a certeza d’um rumo

Numa bússola partida.



Sou o tentar tão inútil

De me tentar explicar

Conduzido por um sonho

Mas sem cama onde acordar.



Sou aquele que ainda corre

Mas sem saber bem porquê.

Sou o filho predilecto

D’um sonho que ninguém crê.



Sou filho de uma utopia

E neto d’uma ilusão

Sou algo meio aparente

De qualquer contradição.




















ELA MORREU









Apesar da dor calada

Que se alimenta no peito.

Apesar do cio nos olhos

E a boca já sem jeito.

Apesar de ir pela rua

C’o a mão dada à solidão

Como nos primeiros passos

Dados nas asas do medo ...

Ela morreu.



Ela foi como um embrulho

Que trocaram nos correios

E, ao abri-lo senti

Que tinha sido enganado.

Fez mentiras que rimavam

Com o fundo dos meus olhos.

Quando ela mostrou as garras

Eu mostrei o que sentia.

Mas eu deixei-a ficar

E ficando, ela mentia.



O seu manto de tristeza era eu que o tecia?



Apesar de ir pelo dia

E saber que ela morreu,

Os olhos entardeceram

E a cidade adormeceu.




























O DESTRUIDOR DE SONHOS







Ela soltou o cabelo

Deu um sorriso à cidade.

E eu pus anéis de silêncio

Nos dedos da auto-estrada.



Então abri o meu corpo

Como se abrisse uma ferida

Despi a pele às idéias

E vi  os ossos dos dias.



Depois vi- a mergulhada

Num vestido inquisidor

E vi que no sonho eu era

O próprio destruidor.



Vejam bem o que fiz dela

Numa canção assassina.

Despenteei o seu rosto

P’ra ver aves de rapina.



Subi ao céu do silêncio

Com as asas de um guerreiro

Só para fazer do meu sonho

O meu próprio prisioneiro.



Foi só para colar palavras

Que eu matei a inocência

E ao destruir mais um sonho

Respirei sobrevivência.



Ela soltou o cabelo

Deu um sorriso à cidade.

E eu destruí mais um sonho

Mascarando a liberdade.





































































MAIS DO QUE TUDO

O FOGO.



QUEIMEM-NOS.


1990








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