Noivado
Oh dor que habitas casas no peito
E tens campos de amor e de ciúme
P’ra levar daqui este queixume.
Diz-me de quantas estações precisas.
Oh dor, filha do meu sofrimento
Ter-me-á calhado em sina eu ser eleito...
O homem que caminha nas areias
Mais negras e profundas do teu beijo?
Oh dor, leva daqui os teus anéis
Os vinhos e as carnes deste noivado.
Escolhe outro nome para amante
Leva nas tuas barcas tal pecado.
Porém, de desta noite mal dormida
Não encontrar senão mais pesadelos,
Que o vale das tuas lágrimas seja feito
Altar do alimento dos meus medos.
A persistência do grito
Poesias mal-ditas
A persistência do grito
Sou viajante no tempo
À espera de adormecer.
Sou ladrão do pensamento
Sou um espião do prazer.
Sou como o pulso de um rio
Aberto numa torrente.
Eu sou a árvore do grito
À procura da semente.
Minhas palavras são estradas
De cinzas, amores e vinhos.
Como as almas dos moinhos
São do vento condenadas.
São beijos nas cicatrizes
São frutos mortos no tempo,
Meus versos são só raízes
E troncos de sofrimento.
Da mesma cor do silêncio
Minhas palavras são escritas.
Minhas palavras são tristes
Como poesias malditas.
Remos de Tinta
Há celas
Nas caravelas.
As velas
Parecem telas
Tecidas de negro mar.
O remador
Puxa a dor
Puxa os olhos para a tela.
Leva nos pés o pincel
Dum peso preso em papel.
O pintor arrasta a tinta
E há quem diga até que sinta
As febres do remador.
NÃO SE SENTEM NESTA MESA
SEM TEREM LAVADO AS MÃOS
AGRESSÃO
Podem chamar-me silêncio
Por uma porta fechada.
Podem chamar-me invasor
Por não ter visto de entrada.
Podem sentar-me na mesa
A comer da vossa crença
Mas não me podem chamar
Agressão sem violência.
Podem chamar-me colchão
Mesmo sem ter dois amantes.
Podem chamar-me escorbuto
Na barca dos navegantes
Podem chamar os meus médicos
Ao inchar esta doença.
Mas não me podem chamar
Agressão sem violência.
Podem capar o meu corpo
À ferida do vosso mundo.
Plastificar os meus sonhos
Nos cartões de um vagabundo.
Doar o meu coração
Fossilizá-lo em carência.
Mas não me podem chamar
Agressão sem violência.
DESTROÇOS DA ÚLTIMA ESPERÂNÇA
OH MAR!
Oh covil de mais um pensamento
Que libertas os gritos do vento
P´elas gargantas das ondas abertas.
No teu ciúme,
Arrancaste com braços de lume
O cinzento que às vezes nos une
E cuspiste-o no dia.
Oh mar !
Se nos braços guardas a bonança
E os restos da última esperânça
O navio ouve o porto.
Oh mar!
Se a nascente guarda o navegante
A corrente já leva na mente
Tê-lo dentro de si.
Oh mar!
Entre a terra e o céu
Há a onda mulher enfeitada.
Barcos casulos lavrando a entrada
Da boca de um porto.
Oh mar
Ouve a prece do frio algemado
O sussurro do vento calado
E deixa-me voltar!
O Guerreiro
Levo um guerreiro no peito
Com um troféu simulado
E uma espada de silêncio
Com o teu nome gravado.
Levo uma rosa nos dentes
E uma armadura na dor
Levo um cavalo invisível
Pra não me sentires chegar.
Levo nuvens nos meus olhos
Levo a sombra companheira
Levo um açaime de sonhos
Pra te fazer prisioneira.
Mas só te vou poder ver
Depois qu’a noite levante.
Levo o vento condenado
Que jurou ser teu amante.
Levo as tranças da miragem
Desfeitas como novelos.
Levo uma coroa de fogo
Pra t’enfeitar os cabelos.
Levo sede nestas feridas
E um beijo como quimera.
Quando chegar ao castelo
Os guardas estarão à espera?
INSÓNIA
Mãe, não consigo dormir
De tanto querer não consigo.
Acordo com as asas negras
Enrolado no umbigo.
Mãe, não consigo dormir
Sinto baratas no rosto
Parece que elas engordam
Onde o veneno foi posto.
Mãe, eu já tenho uma bala
Feita de cuspo e de lama.
Mãe, não consigo dormir
Com bombas na minha cama.
Chegados à terra do nada
Resta-nos esperar
Nos olhos guerreiros rasteja-se a calma
A última batalha pousa nos ombros do esquecimento.
A espada ferve no sangue da terra.
Nós, os filhos do tempo
Repousamos.
Eternamente
A dinastia do tempo e a permanência
Da chuva nas rosas.
Eternamente
A inspecção do sonho
E os olhos azuis da esperânça
Eternamente
As veias da escrita
Plantadas com as sementes de Roma.
Eternamente a seringa
No braço do esquecimento.
Eternamente
O vento falando sòzinho
89
No Ano de 89
1989
As Vozes da América
89
No Ano de 89
Pouco mais de solidão
De meio grito abafado
Nas paredes d´um colchão.
O assassino apalpa a cama
Pergunta quem dormiu nela
Alguém lhe feriu a voz?
Ou foi alguém porta-voz
Da fuga pela janela?
Ele trazia sinceros
Dois olhos feitos archotes
A cabeça como um jogo
Os braços como chicotes.
Parou recordado
Brindou ao que leu
Tudo aquilo eram farsas
Do poeta assassinado
Morto pelo que escreveu.
1989
As Vozes da América
Sei de uma canção
Que fala da morte
E da compreensão.
Agora estou de volta
Não trouxe a canção
Mas trouxe as vozes da América.
Ouçam as vozes da América:
Hoje morreu um homem
Na letra de uma canção.
Foi inventado por mim
Morto pela minha mão.
Já viram que faço dele
Tudo o que me apetecer?
Posso pô-lo em liberdade,
Posso dar-lhe a minha idade
E até o posso abater.
Podia dar-lhe uma arma,
E mandá-lo combater.
Podia fazê-lo calar,
Mete-lo numa prisão
Até o poema acabar.
Posso rasgar o poema.
Fazer cair outro homem,
Gritar-lhe bem alto a canção
No quarto onde as bestas dormem
As feras andam soltas
P´la cidade.
Alguém as teme?
Alguém as prende?
Há alguém que está calado
Porque ninguém o entende?
Há alguém a construir
Na cidade uma cabana?
Já estou farto d´acordar
E pensar que estou na minha cama...
Ei,
Pensam que estou sòzinho?
Atrás da minha cabeça
Tenho escrito prisioneiro.
Alguém me solta?
Dá-me um convento?
Estou na terra de ninguém
A matar tudo o que é tempo.
A violência passou
Tal como passou o vento?
As notícias desta morte
Que é que as vai receber?
No meu caixão quero um espelho.
Quero ver.
1989
NATUREZA MORTA
Quando o pó da chuva cobrir as chagas
Quando os olhos não se acenderem
Quando o suor do macho
Deixar de se vir em sangue
E as ordens apodrecerem ...
Quando a terra-fêmea
Deixar de ser cavalgada.
De dar à luz nossos filhos.
Quando as perguntas
Ficarem penduradas
Nas sombras dos nossos trilhos.
Quando as garras da garganta
Se enterrarem na terra
E a voz das árvores cair.
Quando as veias de um chicote
Fossilizarem mentiras
E a mão errada se partir.
Quando a máquina do tempo
Respirar este veneno,
E nós despirmos a ferida.
Ficará aberta a estrada
Que nos conduz à entrada
Da natureza perdida?
O HOMEM DO SILÊNCIO
Bebi num deserto
Chuvas de gás.
Só vi experiências atómicas
Nos cabelos de um rapaz.
Hiroshima, Palestina.
Sou o homem do silêncio
Ferido em tempo de paz.
Deram-me um nome.
Deram-me um número.
Já esqueci tudo.
Sei que a única gratificação era estar vivo.
Vietnam ou Guiné.
Sou o homem do silêncio
À procura de uma fé.
Tenho amigos pacifistas
Decifrando violência.
Será que eles estão em mim
Ou estarão só na cabeça?
Fácil demais, pensei
Tomei-vos por vendavais
Só que ainda ouço crianças
Com olhos de generais.
Cassetetes, capacetes,
Dominação, opressão.
Será que eles estão em mim
Ou estão só na televisão?
Imperfeições calam bocas
Outras por demais fechadas.
Sou o homem do silêncio
Calado nas vossas estradas.
Labirintos, absintos,
Multidões, outras prisões.
Onde é que vocês estavam
Antes de nos calarmos?
E foi na brecha de um muro
Qu´um dia calcei uma mão.
Toquei numa idéia
Toquei num botão.
Uma mão, um botão.
Um momento:
Onde é que estarão vocês
Antes de morrer o vento?
Ainda há algo a fazer
Sem ser beber-vos os olhos.
Deitar-me na vossa cama
E dormir com o meu fantasma.
Onde é que vocês estavam
Antes de o mundo calar-se?
Sou o homem do silêncio
Que falou em libertar-se.
Homem do telescópio
Os olhos dos insectos denunciam tiranias
Era para onde olhava e viu a tua cidade.
O homem do telescópio
O filho da liberdade.
O homem do telescópio esteve ontem no teu quarto
Antes de fechares a porta
Depois de abrires o gesto.
Gosta do sítio onde vives
Mas odeia tudo o resto.
Devias ter outro nome. Outra identificação.
Entre a janela e o mundo não há qualquer relação.
Facilmente és revelado.
Olhos de masturbação.
O homem do telescópio deixou a janela aberta.
Era talvez um sinal nas tuas noites vazias.
Foste longe
Quase o viste
Chegaste a temer fantasias.
MORTE
SOLTO A VOZ
EM AR DE GRITO.
TUDO O QUE EU TENHA A DIZER
ANTES DE VIR A VIVER
NESTA MORTE FICA DITO.
Sou um monstro.
Sou o monstro que dormita nestas praias
Que vagueia nestes bosques
Desesperados de neve
Inventando ocasiões p´ra tardar em cobardia.
Sou um monstro.
Sou o monstro que deixou a luz acesa
E espera que alguém a apague
Que tem medo de ir dormir
Que amanhã possa ser tarde
Que deixou uma arma na mesa
E um bilhete a indicar
Que é ele o assassino.
Sou um monstro.
Sou o monstro que cuspiu
E envenenou uma roseira
Que aprisionou o que viu
Numa casa de madeira,
Perto de tudo e de nada.
Sou um monstro.
Sou um monstro insaciável de loucura.
Que se esta dor não passa
Deixa passar outro dia
Que vem anunciar sonhos
Num sonho que o agonia.
Sou um monstro.
Sou o monstro que deixou
A fechadura trancada
E o pensamento lá fora.
Sou o monstro que consome cada minuto da hora
1990
AUTO-RETRATO
Um sorriso enterrado
Na cova da boca.
Um rosto apagado
Em dois punhos em chama.
Os dedos mordidos
Pela ira dos dentes.
A sede do álcool
Consumida num cigarro.
O oeste como caminho.
A morte como passaporte.
O tempo enforcado
Na corda das horas.
A noite tropeça
Na mesa onde escreve.
Derramam-se as palavras
Sobre os guardanapos do acaso.
Um homem visto por si próprio
Que lutando contra tortura
Da brancura da folha
Deixa à solta as confissões de uma máscara
E deixa no seu auto-retrato
O testamento de um momento feliz.
1990
PORQUE É QUE PROCURAMOS
AS CHAVES DO CALABOUÇO
ENQUANTO AS MULHERES EM FRENTE DOS ESPELHOS
SE OFERECEM A SI PRÓPRIAS?
1990
Eu não sou um poeta.
Os poetas são falsos.
Apesar de ser falso
Eu não sou um poeta.
Só sei que o copo é curto
A garrafa vazia
E eu tento esquecer
Bebendo poesia.
1990
A ESPERA
O pescador
Chega à cidade.
É só mais um pescador.
A prostituta
Trazia uma mordaça escondida
Na mão de uma mulher.
O homem cego
Fugiu para dentro da luz
E, então percebeu.
Um bêbado recusa-se
A ser bêbado
E abre mais uma cerveja.
O louco, o solitário e o soldado esperam.
1990
AQUI SÓ HÁ DOR
CANÇÃO ASSASSINA
Tinha um poema secreto
Numa canção assassina
Tinha o meu beijo emprestado
À boca da carabina.
Tinha um quarto cheio de facas
E de sombras femininas.
Tinha trezentas imagens
De utilidades divinas.
Tinha uma casa de espelhos
A reflectir o fim.
Mas não.
Nunca mais vou abrir
Estas campas em mim.
E tinha um crime interior
Mesmo gravado na vista.
Tinha nas mãos marginais
Um punhal ilusionista.
Tinha alcatéias de estrelas
Assaltando a solidão
E entre os contornos dos dedos
Os seios da escuridão.
Tinha à mercê da mentira
Uma prisão de marfim.
Tinha uma estrada de sangue
Num invisível jardim.
Mas não.
Nunca mais vou abrir
Estas campas em mim.
À PORTA FECHADA: A CRIAÇÃO ( I e II):
I- Cada homem sozinho
nas quatro paredes do seu quarto vazio,
assume uma forma animal.
Ninguém o trata por homem.
II- Paredes brancas.
Trancas nas portas.
Rendo-me.
Sou algo meio aparente
De qualquer definição
Sei qu’arrasto uma bandeira
Mas não sei bem por que chão.
Sou um vagão solitário
Duma qualquer carruagem
Que vai seguindo entre os trilhos
Duma possível miragem.
Sou o destino inconstante
Duma inconstância sentida.
Sou a certeza d’um rumo
Numa bússola partida.
Sou o tentar tão inútil
De me tentar explicar
Conduzido por um sonho
Mas sem cama onde acordar.
Sou aquele que ainda corre
Mas sem saber bem porquê.
Sou o filho predilecto
D’um sonho que ninguém crê.
Sou filho de uma utopia
E neto d’uma ilusão
Sou algo meio aparente
De qualquer contradição.
ELA MORREU
Apesar da dor calada
Que se alimenta no peito.
Apesar do cio nos olhos
E a boca já sem jeito.
Apesar de ir pela rua
C’o a mão dada à solidão
Como nos primeiros passos
Dados nas asas do medo ...
Ela morreu.
Ela foi como um embrulho
Que trocaram nos correios
E, ao abri-lo senti
Que tinha sido enganado.
Fez mentiras que rimavam
Com o fundo dos meus olhos.
Quando ela mostrou as garras
Eu mostrei o que sentia.
Mas eu deixei-a ficar
E ficando, ela mentia.
O seu manto de tristeza era eu que o tecia?
Apesar de ir pelo dia
E saber que ela morreu,
Os olhos entardeceram
E a cidade adormeceu.
O DESTRUIDOR DE SONHOS
Ela soltou o cabelo
Deu um sorriso à cidade.
E eu pus anéis de silêncio
Nos dedos da auto-estrada.
Então abri o meu corpo
Como se abrisse uma ferida
Despi a pele às idéias
E vi os ossos dos dias.
Depois vi- a mergulhada
Num vestido inquisidor
E vi que no sonho eu era
O próprio destruidor.
Vejam bem o que fiz dela
Numa canção assassina.
Despenteei o seu rosto
P’ra ver aves de rapina.
Subi ao céu do silêncio
Com as asas de um guerreiro
Só para fazer do meu sonho
O meu próprio prisioneiro.
Foi só para colar palavras
Que eu matei a inocência
E ao destruir mais um sonho
Respirei sobrevivência.
Ela soltou o cabelo
Deu um sorriso à cidade.
E eu destruí mais um sonho
Mascarando a liberdade.
MAIS DO QUE TUDO
O FOGO.
QUEIMEM-NOS.
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